segunda-feira, 28 de março de 2016

Não vai ter golpe: uma visão técnico-jurídica sobre a infração à lei orçamentária

O presidente da Câmara recebeu o pedido de impeachment por reconhecer justa causa e indícios de autoria no pedido que aponta que a Presidente da República teria cometido crime de responsabilidade, especialmente por afronta à lei orçamentária.
De fato, a Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art. 85, que são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra a lei orçamentária (inciso VI), esclarecendo ainda que esses crimes devem ser definidos em lei especial (§ único).
Essa lei especial prevista na Constituição trata-se da Lei nº 1.079/1950, que especifica os crimes de responsabilidade e estabelece que tais crimes, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo (arts. 1º e 2º). Em seu art. 10, essa lei dispõe que são crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária, dentre outras coisas, infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária (item 4) e ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal (item 6).
É importante notar que o controle sobre a abertura de crédito suplementar é matéria que mereceu atenção do legislador constituinte, que fez constar no art. 167 a vedação a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem a indicação dos recursos correspondentes (inciso V).
A esse passo, urge reconhecer que o nosso arcabouço constitucional e normativo atribuiu considerável relevância à lei orçamentária e preocupou-se, dentro deste tema, em restringir a possibilidade de abertura de créditos suplementares de forma discricionária, inclusive mediante a caracterização de crime de responsabilidade.
A partir desta compreensão, resta identificar se, no caso concreto, a Presidente da República efetivamente realizou ato que atente contra a lei orçamentária, caracterizando o crime de responsabilidade. A esse respeito, existem fatos incontestes na denúncia apresentada, quais sejam, a edição de decretos sem número abrindo créditos suplementares. O ponto central, portanto, é identificar se tais decretos estavam em desacordo com a lei orçamentária.
A Lei Orçamentária Anual para o exercício de 2015 (Lei nº 13.115/2015), em seu art. 4º, autoriza a abertura de créditos suplementares desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário. A meta de resultado primário, por sua vez, foi estabelecida no art. 2º da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2015 (Lei nº 13.080/2015).
Sobre a compatibilidade com a obtenção da meta de resultado primário, a LRF dispõe, em seu art. 9º, que o não cumprimento das metas importa na obrigação de promover limitação de empenho e movimentação financeira. É nesse sentido o art. 52 da LDO/2015, que informa que a limitação de empenho e movimentação financeira deve ser apurada e informada pelo Poder Executivo a cada órgão orçamentário. Essa limitação deve ser promovida de forma proporcional a participação de cada um no conjunto das dotações iniciais (§1º).
O Ministério do Planejamento divulgou nota (ver aqui) argumentando que o cumprimento da meta de resultado primário é matéria afeita à gestão fiscal, especialmente tratada nos chamados decretos de contingenciamento, e não tem relação com a abertura de créditos suplementares, afeita à gestão orçamentária, que, por si só, não é capaz de autorizar a ampliação das despesas.
É possível argumentar ainda que o §13º do art. 52 da LDO/2015 ratifica o argumento apresentado pelo Ministério do Planejamento, ao dispor que a execução das despesas decorrente da abertura de créditos suplementares fica condicionada aos limites de empenho e movimentação financeira estabelecidos nos termos deste artigo 52. Assim, para haver execução de despesas decorrentes de créditos suplementares, seria necessária a abertura desses mesmos créditos em momento anterior.
A meu ver, contudo, admitir a separação hermética entre gestão fiscal e gestão orçamentária significa despir de qualquer valor semântico o art. 4º da Lei Orçamentária, uma vez que a abertura de quaisquer créditos seria sempre compatível com a obtenção de resultado primário, dado que qualquer valor previsto no orçamento depende da disponibilidade de limites para a sua realização. No mesmo sentido, admitir a abertura de créditos como simples remanejamento de recursos para melhoria da gestão parece incompatível com a regra, de status constitucional, que veda a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa.
Isto posto, me parece clara a existência de suporte técnico-jurídico a justificar o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade, sendo certo que o seu desenrolar e desfecho trata-se de matéria essencialmente política, conforme já comentado em postagem anterior (ver aqui).